sábado, 16 de fevereiro de 2008

4 de setembro de 2006. Cinco horas da tarde aqui. Meio dia lá no Brasil.
O avião aterrissa em Zurique.
É o Zé Angico na Suíça.
Trêmulo, ele apresenta o passaporte, que é carimbado pela polícia.
Se ele soubesse o que tô carregando...

Mesma data, mesmo horário, casa de João Cruvela.
Cadê o cara que não aparece. Puta que pariu!
Acende outro cigarro, com a ponta do que está acabando. Olha para o relógio (Swatch). Passa a mão no cabelo, depois no rosto. Nunca esteve tão ansioso.
Finalmente. Ele deve estar no aeroporto. Cadê o celular?

Procura por um telefone público. Não pode errar.
Porra de número que não acaba mais.
Tu-tu-tu.
E se o cara não atender? Tô fudido.

Alô.
Mesmo depois de combinar com Zé Angico ele continua tenso. Esfrega as mãos. Vai ao banheiro. Faz xixi. Lava as mãos. Molha o rosto. Olha no espelho. Enxuga o rosto. Olha de novo no relógio. Acende outro cigarro. Vai pra varanda da casa fumar. Tem uma garrafa de vinho aberta no chão. Ele abaixa e pega a garrafa. Bebe diretamente do bico. Suspira e olha pra fora. Traga.

Eles se encontrarão em meia hora, na casa do cara.
Compra o bilhete, pega o trem.
Fróindenberg o quê? Ixtrasse? Porra de nome comprido, que nem os números. Caralho!
Desce do trem na HB. Olha para o relógio do Treffpunkt. Faltam 13 minutos para encontrar o cara. Melhor se apressar. Correr. Não há tempo nem pra um cafezinho. Pára, vê o que tram está chegando e corre.
Melhor assim. Ô lugarzinho caro da porra.

O vinho acaba. Faz um pouco de frio e José Cruvelo esfrega as mãos nos ombros pra se esquentar. Resolve entrar. Liga o rádio na cozinha e senta na cadeira junto à mesa. Olha de novo pro relógio. Zé Angico deve estar pra chegar. Ele esboça um sorriso ao lembrar da encomenda que está chegando.
Falta pouco. Vou aguentar.

Corre e pega o tram. Número 10. Limpa o suor da testa.
Observa as fontes d' água os carros, as meninas adolescentes sorrindo...
Se essa galera soubesse o que eu carrego nessa mala. Tem hora que nem eu acredito. Mas esse trampo vai me tirar o pé da lama. Três anos sem emprego e aparece essa chance. Tô com o meu na reta, mas fazer o que? Vou conseguir sair do barraco e quem sabe ir pra uma casinha bacana, Três quartos, quintal pra reunir os amigos pro churrasquinho de domingo, Nunca mais vou atrasar o aluguel, se Deus quiser. Quem sabe dá até pra trocar a moto por um carrinho? É isso aí. Cada um se vira como pode e eu tô me virando.
Ele desce do tram. Com um papelzinho amassado nas mãos, procura o endereço do ' patrão'.
Os prédios são todos iguais. Me fudi. &%*”+&///)ç%*””. Porra de língua.

João Cruvela levanta. Vai até o quarto e pega a carteira. Separa o dinheiro que entregará a Zé Angico pelo serviço. Beija a santa que está no criado, pedindo a ela que dê tudo certo e o cara chegue logo.

Zé Angico enfim, encontra o endereço. Confere o nome na plaquinha: João Cruvela. Toca a campainha. A porta se abre e ele sobe as escadas correndo. A porta do apartamento está entreaberta. A luz do hall, acionada pela sua presença, ilumina o interior do casa, na penumbra. O ' patrão' o recebe. Nervoso, sua em bicas. Limpa de novo o suor da testa.
Cara, achei que tava na maior enrascada. Não entendi uma letra do que ouvi na rua. Cidade de doido. Povo estranho. Taqui a encomenda.
Ele estende o pacote. Instantaneamente João Cruvela toma a encomenda da mão do avião. Seus olhos brilham. Fissura de 12 dias sem o bagulho. Imediamente ele corre pra cozinha. Zé Angico não entende nada. Tremendo, ele acende o fogo do fogão. Põe uma frigideira pra esquentar e adiciona gordura. O óleo esquenta, quase sai fumaça. Ele abre a geladeira. Pega dois ovos e quebra as cascas, joga na frigideira. Ele inspira o cheiro que sai da frigideira, quase num êxtase.
Zé Angico continua sem compreender.
Ovo + farinha? Que diabos de cara louco da porra.
Como um psicopata prestes a exterminar sua vítima, João Cruvela rasga o saco com a farinha. Parte do conteúdo branco voa, como uma nuvem de fumaça fina. Uma névoa toma conta da cozinha. Zé Angico entra em pânico.
O que o cara vai fazer?
Se algo acontece a culpa pode ser dele.
Mais que depressa, ele joga boa parte do saco dentro da frigideira. Gordura, ovo e o pó branco viram... farofa!
Com um prazer quase sexual João Cruvela mete a mão na panela e com as mãos queimando com o calor, experimenta um bocado da iguaria.
Zé Angico sai correndo. Aquilo era ilegal, ele tinha certeza. Não se podia comer farinha na Suíça. Aquele era um país realmente estranho. Ele precisava dar o fora dali o mais rápido possível.
Quando ele faz menção de sair João Cruvela o segura pela mão.
Te explico tudo. Me dá cinco minutos. Te garanto que não vai arrepender.
Zé Angico senta e João Cruvelo conta sua história. Ele tinha chegado aqui há cinco anos:
A farinha é o principal e primordial ingrediente da... farofa! Farofa que vai muito bem com feijão, ovo ou um bom churrasco. Hummmm. Desde criança fui fissurado por farinha. Tanto que quando saí do Brasil minha principal preocupação era ficar sem ela. Solução: trouxe 10 quilos. Isso mesmo, 10 quilos da danada. O que eu não esperava era que a gringaiada ficasse fissurada na farinha tanto quanto eu. E o que era comida pro estômago acabou alimentando o bolso. Daí foi um pulo pra eu virar o rei da farinha de Zurique.
Bem, foi bom enquanto durou. Os hômi começaram a fazer marcação cerrada. Tive que sair do país, dar um tempo fora. Mas não adiantou. Voltei e eles continuaram em cima. O produto é proibido aqui, você sabe. Fui chamado para uma audiência e não fui. Sou foragido. Não posso continuar no negócio. Você é minha única esperança. Com o tempo, infelizmente, acabei ficando viciado na farinha. Te passo todos os clientes, os contatos, tudo, tudo, tudo. E você, em troca, tem apenas que me vender o que consumo por mês.
Corta e mostra ele triste, absolutamente viciado, mas querendo passar o ' cargo' para Zé Angico.
Zé Angico sai sem dizer uma palavra. Anda pela cidade. Mostraremos coisas que identificam bem Zurique. Ele volta. Abre a porta:
Tô dentro.
Cena muda mas com som ascendente mostrando Joâo Cruvelo explicando tudo a Zé Angico. Repetições de cenas dele chegando ao aeroporto, cada vez mais bem vestido e feliz. Distribuição da farinha aos gringos.
Um dia ele acorda e tem a idéia que supõe brilhante.
Vou plantar mandioca e eu mesmo produzirei a farinha. Já pensou esses alpes cheinhos de madioca? Ninguém nunca plantou nada aqui. Se mandioca dá, e muito, no Ceará, porque não vai dar aqui. Hahahaha.
Ele faz alguns telefonemas. Dias depois as mudas chegam do Brasil. Ele vai buscar e imediata
mente faz para um cume de uma montanha e as planta. Vai pra casa feliz. Faz planos ambiciosos: Moto? Não, carro! Lancha? Não, iate! Ultra-leve? Não, avião. Apartamento? Não, mansão na beira do lago.
Ele sonha, sonha e sonha até adormecer. No dia seguinte vai conferir como andam as mudinhas.... Ao chegar ao local, há placas de homens trabalhando e as plantas desapareceram. Desesperado, ele coloca as mãos na cabeça. Procura por todos os cantos. Não as encontra. Fica de joelhos e roga aos céus que lhe ajudem. Nada.

*******

Conta a lenda de uma nação do tronco tupi-guarani, que a filha de um chefe guerreiro apareceu grávida sem nunca ter tido contato algum com um homem. Dessa moça virgem nasceu uma criança, para surpresa da tribo, muito branca e muito precoce, o que atraia muita gente à taba. Chamaram-na Mani. Passado um ano ela morreu, foi enterrada em sua própria casa e, segundo a tradição, sua sepultura regada diariamente. Passado um tempo nasceu uma planta, cresceu e floresceu até que a terra fendeu mostrando o fruto que acreditaram fosse a própria Mani. Comeram-no e o chamaram de mani-oca, a casa da Mani, que logo se transformou no pão e no vinho de nossas populações nativas.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Life, sweet life

- Tem vontade de voltar logo?
- Tenho e não tenho.
- Explica melhor.
- Já estou saudosista... das coisas que terei vivido aqui. Mas tenho saudades das coisas daí, das que não tenho aqui. Enfim, já tenho saudade da vida daqui, mas tenho também da minha vida aí. Uma vida de verdade...
- Vida doriana?
- Mais ou menos...
- Saudade do que, por exemplo?
- Casa, carro e cachorro. (Aqui é estudiozinho, tram e cachorro só na rua).
- Ter neném, que delícia. Essa é minha vida, doriana, e adoro. Mas, confesso que, tem hora que acho medíocre.
- Medíocre por que? Medíocre é quem não sabe ser feliz.

** Baseado em fatos reais e em homenagem pra uma amiga muito querida.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Cida acordara às seis em ponto. A rotina era a mesma a 20 anos, desde que se casara com Pedro.

Pedro fora seu primeiro e único homem. Dos rapazes da rua ele era o único trabalhador e ajuizado, rezavam em coro todas as mães de moçoilas em idade casadoura. Cida enrabichou-se com ele aos 12. Para não ficar falada, aos 15 Pedro meteu-lhe um anel de noivado no anular direito. Aos 17, com a autorização dos pais, pois ainda menor de idade, entrava na igreja para se casar com ele. Vestida de branco, embora não fosse mais virgem a pelo menos três anos. E daí? Pedro jurou que nunca contaria o que aconteceu naquela noite sob as escadarias da torre da igreja. Era um segredo dos dois. E assim seria até que um enterrasse o outro.

Ela passava o café. Na segunda prateleira da porta esquerda do armário amarelo da cozinha sempre havia um quitanda pronta para a ocasião: pão, broa, bolo. Não importava. Pois Pedro nunca comia. Sequer tocava na comida. Bebia o café: puro, amargo, sem açúcar e ir pra firma. De onde retornaria apenas às seis e trinta. Pegava o ônibus das seis e quinze. Em treze minutos descia no ponto na esquina de casa. Dois minutos era o que levava até tocar a campainha. Cida largava o feijão no fogão e vinha correndo abrir o portão.
- Quando é que você vai mandar trocar esse portão, Pedro? Não aguento mais arrastar essa porcaria, reclamava. Esse portão ainda acaba comigo.
- Mês que vem, se sobrar dinheiro, prometia ele. E assim se passavam os meses, anos. O portão era o mesmo desde que eles se casaram. Assim como era a casa e tudo que nela havia.

No dia seguinte, a mesma rotina, encerrada com a mesma revolta por causa do portão.

Na quarta-feira de Cinzas Cida decidira que seria diferente. Mas fez tudo igual, para não levantar qualquer suspeita. Acordou, fez o café, pôs a mesa. Mal Pedro saiu começou seu plano. Pintou as unhas de vermelho sangue, como Quitéria, a dona do açougue. Abriu o guarda-roupa e escolheu o vestido mais bonito. Fechou o zíper olhando no espelho da penteadeira, satisfeita com o que via. Ela mesma o fizera, para o casamento da cunhada, irmã mais nova de Pedro. Foi a mais bela da festa. Até o noivo, Raimundo, não tirou os olhos dela no próprio casório. Sem falso pudor ela sambou a noite inteira. Era a chance de relembrar os tempos de moça, quando matava as irmãs da igreja de inveja nos bailinhos da paróquia. Calçou a sandália dourada de salto alto herdada da irmã. Para combinar com o esmalte, passou o resto do batom vermelho que estava esquecido no fundo da bolsa.

Saiu de casa. Antes, arrastou o tal portão:
- Essa porcaria ainda me derruba um dia, brada.

Atravessa a rua. Do outro lado, o açougue.
- Oi seu João, um quilo de alcatra, por favor, pede.
- Mas a senhora está assim, diferente, diz o açougueiro, sem tirar os olhos da mulher que ele desejava a exatos vinte anos.
- De vez em quando a gente precisa se arrumar, pra lembrar que tá viva.

Ele entrega a carne e a puxa pelo braço. Ela nada diz. João a leva para o frigorífico atrás do açougue. Àquela hora ninguém apareceria por lá. Os dois entram na imensa geladeira. O cheiro de carne crua e sangue não enoja Cida. Desperta todos os hormônios adormecidos em suas veias. Ela se entrega ao açougueiro. Sem dizer nenhuma palavra, ela ajeita o vestido, pega a bolsa e sai. Deixa o pacote de carne em cima do balcão. Atravessa a rua, escancarando os dentes para o vira-lata que a encara, única testemunha de sua infidelidade. Olha para o portão. "Vida miserável", pensa. Empurra o ferro com os dois braços. As dobradiças cedem e o portão cai em cima de Cida. Ela cai. Fita o céu. Sorri. E morre esmagada pelo portão.









quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Errata (para o post anterior)

Meu melhor amigo é ruivo, logo, vermelho também.

p.s.: Desculpa, viu?

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Carmim


Vermelho é a cor da casca da maçã. Jessica Rabbit usa um vestido vermelho para seduzir Roger Rabbit. Apenas mulheres com mais de 30 anos podem usar batom vermelho sem ficar ridículas. Rosas vermelhas são as enviadas por homens apaixonados às suas musas. Pessoas tímidas ficam com as bochechas vermelhas quando alguma situação lhes causa constrangimento. Vermelho é a cor do pecado. O traje de Papai Noel é vermelho. Idem para o de Chapeuzinho, claro. Quando o semafóro fica vermelho, os caros param, ou pelo menos devem parar. Ainda não inventaram um ibook vermelho (mas deviam). As botas de cowboy do par romântico de Kevin Bacon em Footlose eram vermelho-sangue. Touros são atraídos pela cor vermelha. Sou louca por almofadas em forma de coração, vermelhas. O Bloody Mary é vermelho. Assim como catchup. Se você cortar o dedo, o sangue que sairá será vermelho. A menstruação é vermelha. Já usei um vestido vermelho de cetim. Depois dos 40, muitas mulheres optam pela coloração vermelha para o cabelo. Red Bull te dá asas e tem logo vermelha. A Ferrari mais famosa é a vermelha. O círculo da bandeira do Japão é vermelho. As erupções da catapora são vermelhas. Perto do Valentine's Day, a decoração das lojas é basicamente vermelha. Advogados usam anéis com pedras vermelhas. Frutas vermelhas ficam irresistíveis com sorvete de baunilha. Para decorar paredes de cabarets, nada melhor que veludo vermelho. O rubi é vermelho. Fashionistas estão usando bolsas vermelhas. Morangos são vermelhos por dentro e por fora. Tirando a cruz, o resto da bandeira da Suíça é vermelha. A Cruz Vermelha da Cruz Vermelha (naturalmente) é vermelha. Meu próximo iPod será vermelho. Ruivos têm cabelos vermelhos. Gente com pouca melanina fica vermelha se exposta ao sol. Os olhos dos coelhos são vermelhos. O ouro vermelho é um tipo raro. A capa da minha agenda é vermelha. Assim como o casaco de veludo cotelê que herdei de minha mãe.O carro dos bombeiros é vermelho. Branca de Neve usava uma fita vermelha no cabelo. Terra vermelha suja o seu carro. Bebês muito fofos devem usar uma fitinha vermelha para evitar mal-olhado. Paredes vermelhas aquecem o ambiente. Unhas vermelhas são as minhas prediletas. Celebridades pisam em tapetes vermelhos. HRaiva faz gente ficar vermelha. Vermelho foi a cor do meu primeiro carro. A outra cor do White Stripes é vermelho. Estão querendo acabar com a Zona vermelha em Amsterdam. Luzes vermelhas cintilam nas sirenes da ambulâncias e viaturas. Se você puxar meu braço com força vai ficar vermelho.