segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Cida acordara às seis em ponto. A rotina era a mesma a 20 anos, desde que se casara com Pedro.

Pedro fora seu primeiro e único homem. Dos rapazes da rua ele era o único trabalhador e ajuizado, rezavam em coro todas as mães de moçoilas em idade casadoura. Cida enrabichou-se com ele aos 12. Para não ficar falada, aos 15 Pedro meteu-lhe um anel de noivado no anular direito. Aos 17, com a autorização dos pais, pois ainda menor de idade, entrava na igreja para se casar com ele. Vestida de branco, embora não fosse mais virgem a pelo menos três anos. E daí? Pedro jurou que nunca contaria o que aconteceu naquela noite sob as escadarias da torre da igreja. Era um segredo dos dois. E assim seria até que um enterrasse o outro.

Ela passava o café. Na segunda prateleira da porta esquerda do armário amarelo da cozinha sempre havia um quitanda pronta para a ocasião: pão, broa, bolo. Não importava. Pois Pedro nunca comia. Sequer tocava na comida. Bebia o café: puro, amargo, sem açúcar e ir pra firma. De onde retornaria apenas às seis e trinta. Pegava o ônibus das seis e quinze. Em treze minutos descia no ponto na esquina de casa. Dois minutos era o que levava até tocar a campainha. Cida largava o feijão no fogão e vinha correndo abrir o portão.
- Quando é que você vai mandar trocar esse portão, Pedro? Não aguento mais arrastar essa porcaria, reclamava. Esse portão ainda acaba comigo.
- Mês que vem, se sobrar dinheiro, prometia ele. E assim se passavam os meses, anos. O portão era o mesmo desde que eles se casaram. Assim como era a casa e tudo que nela havia.

No dia seguinte, a mesma rotina, encerrada com a mesma revolta por causa do portão.

Na quarta-feira de Cinzas Cida decidira que seria diferente. Mas fez tudo igual, para não levantar qualquer suspeita. Acordou, fez o café, pôs a mesa. Mal Pedro saiu começou seu plano. Pintou as unhas de vermelho sangue, como Quitéria, a dona do açougue. Abriu o guarda-roupa e escolheu o vestido mais bonito. Fechou o zíper olhando no espelho da penteadeira, satisfeita com o que via. Ela mesma o fizera, para o casamento da cunhada, irmã mais nova de Pedro. Foi a mais bela da festa. Até o noivo, Raimundo, não tirou os olhos dela no próprio casório. Sem falso pudor ela sambou a noite inteira. Era a chance de relembrar os tempos de moça, quando matava as irmãs da igreja de inveja nos bailinhos da paróquia. Calçou a sandália dourada de salto alto herdada da irmã. Para combinar com o esmalte, passou o resto do batom vermelho que estava esquecido no fundo da bolsa.

Saiu de casa. Antes, arrastou o tal portão:
- Essa porcaria ainda me derruba um dia, brada.

Atravessa a rua. Do outro lado, o açougue.
- Oi seu João, um quilo de alcatra, por favor, pede.
- Mas a senhora está assim, diferente, diz o açougueiro, sem tirar os olhos da mulher que ele desejava a exatos vinte anos.
- De vez em quando a gente precisa se arrumar, pra lembrar que tá viva.

Ele entrega a carne e a puxa pelo braço. Ela nada diz. João a leva para o frigorífico atrás do açougue. Àquela hora ninguém apareceria por lá. Os dois entram na imensa geladeira. O cheiro de carne crua e sangue não enoja Cida. Desperta todos os hormônios adormecidos em suas veias. Ela se entrega ao açougueiro. Sem dizer nenhuma palavra, ela ajeita o vestido, pega a bolsa e sai. Deixa o pacote de carne em cima do balcão. Atravessa a rua, escancarando os dentes para o vira-lata que a encara, única testemunha de sua infidelidade. Olha para o portão. "Vida miserável", pensa. Empurra o ferro com os dois braços. As dobradiças cedem e o portão cai em cima de Cida. Ela cai. Fita o céu. Sorri. E morre esmagada pelo portão.









Um comentário:

Joãozinho disse...

Tá. Eu tenho problema, mas o final foi engraçado.